quinta-feira, 4 de março de 2010

Cartas do diabo à seu aprendiz - Carta II

Meu Caro Wormwood,

Vejo, com muito desgosto, que seu paciente tornou-se um cristão. Não nutra esperanças de que você irá escapar as penas usuais; de fato, em seus melhores momentos, eu esperaria que você nem pensasse em tal coisa. Enquanto isso é preciso que façamos o possível para fazer o melhor que podemos dessa situação. Não há porque se desesperar; esses adultos convertidos são reconquistados às centenas após uma breve excursão para dentro do arraial do Inimigo, e hoje habitam conosco. Todos os hábitos do paciente, tanto intelectuais quanto físicos, estão ainda a nosso favor.

Um dos maiores aliados que temos hoje é a própria Igreja. Não me interprete mal. Não me refiro à Igreja como nós a vemos, difundida através de todo o espaço e o tempo e enraizada na eternidade, como um invencível exército com suas bandeiras. É um espetáculo, confesso, que traz insegurança e inquietação aos mais corajosos entre nós. Mas felizmente, esta Igreja é inteiramente invisível aos olhos humanos.Tudo que seu paciente pode ver é o prédio inacabado, pretendendo um estilo gótico, num bairro novo. Entrando ali, o paciente vê o dono da quitanda local, com uma expressão de bemaventurança no rosto, que se apressa em lhe oferecer um livrinho contendo uma liturgia que nenhum dos dois entende, e mais um outro livrinho caindo aos pedaços que contem letras corrompidas de hinos religiosos (a maioria, péssimos) impressas em letra miúda. Ao assentar-se num dos bancos e olhar ao redor, o paciente vê justamente os vizinhos que até então evitara. Você vai precisar desses vizinhos. Faça com que sua mente fique a flutuar entre uma expressão como “o corpo de Cristo” e os rostos concretos que ele pode ver nos bancos próximos. Interessa muito pouco saber qual seja, na realidade, o tipo de pessoas acomodadas naqueles outros bancos. Pode ser quer você saiba que um de entre eles é um grande guerreiro nas fileiras do Inimigo. Não interessa. Seu paciente, graças a Nosso Pai que está Abaixo, é um tolo. Contanto que alguns dos seus vizinhos que ali estejam cantem desafinados, ou usem sapatos barulhentos, ou tenham dupla papada, ou estejam usando roupas esquisitas, o paciente poderá logo crer muito facilmente que a religião deles é, de certa forma, ridícula. Pois no estágio em que ele se encontra ele possui um conceito do que seja um cristão que ele supõe ser espiritual, mas que é de fato uma colagem de figuras. Sua mente está cheia de togas e sandálias e armaduras e pernas nuas, e o simples fato de que outras pessoas na igreja estejam a trajar roupas modernas constitui-se numa verdadeira (embora inconsciente) dificuldade para ele. Nunca deixe que essa dificuldade chegue à tona: nunca permita que ele inquira a respeito de como esperava que esses cristãos fossem. Mantenha tudo confuso em sua mente agora, e você terá toda a eternidade para se divertir produzindo nele a peculiar clareza mental que o Inferno oferece.

Invista pesado, então, na decepção ou anti-clímax que com certeza virá ao paciente no decorrer das primeiras semanas de freqüência à igreja. O Inimigo permite que o referido desapontamento ocorra na fase inicial de todos os esforços dos seres humanos. Ocorre quando o menino que na creche se encantara ao ouvir as histórias da Odisséia passa depois a estudar, com afinco, o grego. Ocorre quando namorados finalmente se casam e começam a real tarefa de aprender a viverem juntos. Em todas as áreas da vida, esse desapontamento assinala a transição necessária entre as aspirações sonhadas e a realização trabalhosa. O Inimigo toma esse risco porque acalenta a curiosa fantasia de tornar esses nojentos vermezinhos humanos a que Ele chama de seus livres amigos e servos - filhos é a palavra que Ele emprega em sua preferência costumeira por degradar todo o mundo espiritual mediante relações não naturais que estabelece com esses bípedes. Desejando, portanto, que eles sejam livres, Ele se recusa a carregá-los com afeições e pela força de hábito a qualquer dos objetivos que Ele estabelece para eles. Ele os deixa "fazerem sozinhos", e é aqui que reside nossa oportunidade. Mas é aqui também que existe perigo. Se eles conseguem atravessar esta fase seca inicial com sucesso eles se tornam muito menos dependentes de emoções, e portanto ficam muito mais difíceis de tentar.

Até aqui, tenho escrito assumindo que as pessoas nos demais bancos não dão motivos específicos para o tal desapontamento. Com efeito, se derem motivos - se o paciente souber que aquela mulher de chapéu esquisito é profundamente viciada em jogos de azar, ou que o indivíduo dos sapatos barulhentos é avarento e ganancioso - então seu trabalho fica muito mais fácil. Você só precisa banir da mente dele a pergunta "Se eu, sendo o que sou, posso me considerar, de certa forma, como um cristão, porque os diferentes pecados destas pessoas nos bancos aí ao lado provariam que a religião deles não passa de hipocrisia e convencionalismo? ". Você pode estar perguntando se é possível evitar que uma pergunta tão óbvia venha até a uma mente humana. Mas é, Wormwood, é! Manipule-o corretamente e verá que isto jamais lhe passará pela cabeça. Seu paciente não teve ainda tempo suficiente de convivência com o Inimigo para adquirir verdadeira humildade. O que ele diz, mesmo quando de joelhos, sobre seus pecados, é mera conversa de papagaio. No fundo, ele ainda acha que no balanço da conta-corrente do Inimigo a sua situação é muito favorável, pois ele consentiu em se deixar converter, e acha uma extrema prova de humildade e desprendimento o fato de freqüentar a igreja com essa "corja" de semelhantes medíocres. Faça tudo para mantê-lo o maior tempo possível neste estado de pensamento.

Seu afetuoso tio,
Screwtape


C.S. Lewis (do livro Cartas do diabo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário